quarta-feira, 30 de março de 2016

Sophia Mello Breyner Anderson --- Jardim do mar, do sol e do vento

Jardim do mar, do sol e do vento,
Áspero e salgado,
Pelos duros elementos devastado
Como por um obscuro tormento:
E que não podendo como as ondas 
Florescer em espuma,
Raivoso atira para o largo, uma a uma,
As pétalas redondas
Das suas raras flores.
Jardim que a água chama e devora
Exausto pelos mil esplendores
De que o mar se reveste em cada hora.
Jardim onde o vento batalha
E que a mão do mar esculpe e talha.
Nu, áspero, devastado,
Numa contínua exaltação,
Jardim quebrado
Da imensidão.
Estreita taça
A transbordar da anunciação
Que às vezes nas coisas passa.

Sophia Mello Breyner Andersen

terça-feira, 22 de março de 2016

Alexandre O´ NEILL Os Domingos de LISBOA

Alexandre O'Neill
Os domingos de Lisboa
Os domingos de Lisboa são domingos
Terríveis de passar - e eu que o diga!
De manhã vais à missa aS. Domingos
E à tarde apanhamos alguns pingos
De chuva ou coçamos a barriga.
As palavras cruzadas, o cinema ou a apa,
E o dia fecha-se com um último arroto.
Mais uma hora ou duas e a noite está
Passada, e agarrada a mim como uma lapa,
Tu levas-me p'ra a cama, onde chego já morto.
E então começam as tuas exigências, as piores!
Quer's por força que eu siga os teus caprichos!
Que diabo! Nem de nós mesmos seremos já senhores?
Estaremos como o ouro nas casas de penhores
Ou no Jardim Zoológico, irracionais, os bichos?

segunda-feira, 21 de março de 2016

ALexandre O´ Neill

AZUL AR
azul mais azul que todo o azul do mar
azul mais azul que todo o azul do mundo
que azul tão azul tinha
ali o azul do céu
para onde azulou o passarinho meu
ALEXANDRE O' NEILL

Afonso Duarte "Cobrem-me as fontes já cabelos brancos"

CABELOS BRANCOS
Cobrem-me as fontes já cabelos brancos,
Não vou a festas. E não vou, não vou.
Vou para a aldeia, com os meus tamancos, 
Cuidar das hortas. E não vou, não vou.
Cabelos brancos, vá, sejamos francos,
Minha inocência quando os encontrou
Era um mistério vê-los: Tive espantos
Quando os achei, menino, em meu avô.
Nem caiu neve, nem vieram gelos:
Com a estranheza ingénua da mudança,
Castanhos remirava os meus cabelos;
E, atento à cor, sem ter outra lembrança,
Ruços cabelos me doía vê-los ...
E fiquei sempre triste de criança.
AFONSO DUARTE

Maria do Rosário Pedreira --- " de tarde viera alguém com flores"

"De tarde viera alguém com flores..."
"De tarde viera alguém com flores - lírios,
jacintos, narcisos, despedidas - a a porta ficara
aberta desde então. Agora as traças ciciavam
lá fora numa alegria turva em redor de uma
lâmpada; e, sobre o banco do alpendre, jazia um
livro aberto na mesma página fazia quase um dia.
Batia-me nos pulsos uma vida vencida; e, mesmo
que a terra apenas aguardasse o fulgor da manhã
para chamar pelo teu corpo, tive a certeza de que
era sobre o meu que a noite eternamente se abatia"
(Maria do Rosário Pedreira)

sexta-feira, 18 de março de 2016

Amigo Alexandre O' Neill

Amigo
Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra «amigo».
«Amigo» é um sorriso 
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!
«Amigo» é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.
«Amigo» é a solidão derrotada!
«Amigo» é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa
ALEXANDRE O' NEILL