terça-feira, 19 de abril de 2016

Fernando Pessoa---- Olhando o MAR

Olhando o mar, sonho sem ter de quê.
Nada no mar, salvo o ser mar, se vê.
Mas de se nada ver quanto a alma sonha!
De que me servem a verdade e a fé?
Ver claro! Quantos, que fatais erramos,
Em ruas ou em estradas ou sob ramos,
Temos esta certeza e sempre e em tudo
Sonhamos e sonhamos e sonhamos.
As árvores longínquas da floresta
Parecem, por longínquas, 'star em festa.
Quanto acontece porque se não vê!
Mas do que há pouco ou não há o mesmo resta.
Se tive amores? Já não sei se os tive.
Quem ontem fui já hoje em mim não vive.
Bebe, que tudo é líquido e embriaga,
E a vida morre enquanto o ser revive.
Colhes rosas? Que colhes, se hão-de ser
Motivos coloridos de morrer?
Mas colhe rosas. Porque não colhê-las
Se te agrada e tudo é deixar de o haver?
Fernando Pessoa

domingo, 17 de abril de 2016

Fernando Pessoa ~~~~~~~ Dedicatória aos AMIGOS


 DEDICATÓRIA aos AMIGOS ---- FERNANDO PESSOA
" Quando o nosso GRUPO  estiver incompleto
Um dia a maioria de nós irá separar-se.
Sentiremos saudades de todas as conversas atiradas fora,
das descobertas que fizemos, dos sonhos que tivemos,
dos tantos risos e momentos que partilhámos.
Saudades até dos momentos de lágrimas, da angústia, das
vésperas dos fins-de-semana, dos finais de ano, enfim...
do companheirismo vivido.
Sempre pensei que as amizades continuassem para sempre.
Hoje já não tenho tanta certeza disso.
Em breve cada um vai para seu lado, seja
pelo destino ou por algum
desentendimento, segue a sua vida.
Talvez continuemos a encontrar-nos, quem sabe... nas cartas
que trocaremos.
Podemos falar ao telefone e dizer algumas tolices...
Aí, os dias vão passar, meses... anos... até este contacto
se tornar cada vez mais raro.
Vamo-nos perder no tempo...
Um dia os nossos filhos verão as nossas fotografias e
perguntarão:
Quem são aquelas pessoas?
Diremos... que eram nossos amigos e... isso vai doer tanto!
- Foram meus amigos, foi com eles que vivi tantos bons
anos da minha vida!
A saudade vai apertar bem dentro do peito.
Vai dar vontade de ligar, ouvir aquelas vozes novamente.

reunir-nos-emos para um último adeus a um amigo.
E, entre lágrimas, abraçar-nos-emos.
Então, faremos promessas de nos encontrarmos mais vezes
daquele dia em diante.
Por fim, cada um vai para o seu lado para continuar a viver a
sua vida isolada do passado.
E perder-nos-emos no tempo...
Por isso, fica aqui um pedido deste humilde amigo: não
deixes que a vida
passe em branco, e que pequenas adversidades sejam a causa de
grandes tempestades...
Eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem
morrido todos os meus amores, 
mas enlouqueceria se morressem
todos os meus amigos ! "
Fernando Pessoa

domingo, 3 de abril de 2016

David Mourão Ferreira ---------- e deste amor difícil só nasceu



E deste amor difícil só nasceu
logo que o mar se vai, a desejá-lo:
é como o nosso amor, somente embalo
enquanto não é mais que uma promessa…
Mas se na praia a onda se espedaça,
há logo nostalgia duma flor
que ali devia estar para compor
a vaga em seu rumor de fim de raça.
Bruscos e doloridos, refulgimos
no silêncio de morte que nos tolhe,
como entre o mar e a praia um longo molhe
de súbito surgido à flor dos limos.
E deste amor difícil só nasceu
desencanto na curva do teu céu.
David Mourão-Ferreira

VERONA --- A CASA da JULIETA

Verona
a casa da Julieta
é pequena, escura, insignificante.
O edifício está enegrecido
só a varanda de pedra foi limpa:
destaca-se como um grito branco
numa boca escura.
Tudo é um pouco de menos
nesta fachada demasiado obscura
agora brutalmente iluminada
pela luz fluorescente
duma loja de design
colocada mesmo em frente
no mesmo pátio
no mesmo átrio mítico.
Fui procurar
a memória da história
e encontrei a tecnologia
gritando
contra o endurecido mito
do sentimento
petrificado no tempo.
Tinha esquecido que o amor
é coisa mental
e que na superfície do real
é como um grito branco
Numa boca ESCURA....